A LUTA DE MARIZETE



Seis anos e alguns meses se passaram desde aquele dia que Marizete saiu com a sua amiga para um simples passeio, dar uma volta, refrescar a cabeça, jogar conversa fora, contar novidades. Um dia aparentemente normal, até se aproximar delas um homem descalço, acompanhado por um cachorro (cadela) – soube Marizete depois, e que se chamava Freda.

Na verdade era um mendigo, aparentava ser um mendigo. O que teria ele de especial que fez com que Marizete perguntasse a sua amiga: - “quem é?”. - “Podes até não acreditar, mas o cara é advogado” – falou a amiga.

Ele escutou – claro - ao mesmo tempo em que se achegavam, ele e a cachorra, foi puxando do bolso um documento, num gesto não-agressivo, ao contrário, de humilde cansaço, talvez. Era uma carteira da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil.

- “Você precisa de ajuda, né?” – falou ela. Ele abaixou os olhos balançando a cabeça num vagaroso sim. - “Mas” – disse, - “gostaria de te mostrar a minha casa”.

Marizete voltou-se para a amiga e falou: - “eu vou!”, - “vou ajudá-lo”. Segundo ela mesma, aquele passo seria o começo de “uma grande luta”.

Ele colocou a mão no ombro dela, assim como um ceguinho faz com o seu guia, e foram-se em busca da tal casa.

- “Nossa!”, “Que susto!”, “Quanta sujeira, naquela casa!” – ela disse. Pior, mendigos e viciados abundavam por todas as peças da grande casa. Morava lá também um menino, que ele disse ser seu filho adotivo.

No dia seguinte Marizete voltou lá, decidida. Ao encontrá-lo falou, de chofre: - “Você quer ser internado?”. Um movimento afirmativo de cabeça, por parte dele, e logo os dois estavam dentro de um táxi, em direção à Colônia Santana. Era o dia 17 de Maio de 2006.

Ela rapidamente descobriu que ele já tinha passagens por aquela Colônia Psiquiátrica e de tratamento para dependentes alcoólicos e de outras drogas. Passou a visitá-lo a cada semana, como se fosse alguém da sua família. Providenciava tudo, roupas, calçados, material de higiene, e via, dia-a-dia, como ele se sentia um homem mais e mais feliz.

Ia cuidando, ao mesmo tempo, da casa, dando ordens, reformando, religando a energia elétrica, a água, reconstruindo o caos. Mas sentia-se tão só! Nenhum dos “agregados” dispunha-se a ajudá-la.

Três meses se passaram desde a internação. Então a alegria do retorno se deu. Explodiram em felicidade mútua.

Seria o começo de uma nova vida para ele! Não havia quase dinheiro, a comida era escassa, mas para tudo Deus daria um jeito, o importante era estar bem – e porque não atuando como advogado?

Ele recolocou-se perante a OAB, na Advocacia Dativa, e os clientes começaram a chegar. Aliás, não paravam de chegar! Mas não havia chances para ele se Marizete não tivesse se disposto a secretariar-lhe completamente a vida.

E ela passou a ser na vida dele, a faz-tudo, o pau-pra-toda-obra, de cozinheira e faxineira à secretária; e mais, também à babá daquele seu filho adotivo.

Os anos se passaram. Duas terríveis recaídas, porém contornáveis. Mas ela acrescentou às suas “atividades” mais uma – a de enfermeira. Administrava também agora a farmácia caseira.

Certo dia, porém, próximo ao Natal, ele, muito feliz, falou-lhe que Deus o tinha curado. A partir de agora, não haveria mais necessidade de medicamentos em sua vida. Ele, na verdade, tinha se tornado crente de uma dessas novas e proliferativas igrejas evangélicas. Mas Marizete era espírita – conhecia razoavelmente as Obras de Allan Kardec. E isso não mudaria, para desgosto e contrariedade dele.

Desse dia em diante uma nuvem sombria se aproximou e fez morada permanente. A agitação e a confusão passaram a dominá-lo, o surto caminhava a passos acelerados – ela via. A recaída pelo álcool com todos os seus desdobramentos naquele psiquismo mais do que complicado era um filme já visto.

Ela pediu socorro. Recorreu como última forma à família dele, que desde muito tempo não admitia vê-lo nem por decreto.

Ela entregou os pontos, estava cansada de tanta luta. Abandonou-o definitivamente, embora seu coração dissesse: “tu volta!”

Foi trabalhar no Hospital de Caridade de Florianópolis, na CliniRim. Passaria 120 pacientes na hemodiálise. Essa era então a sua nova tarefa. E perguntava-se, constantemente, porque, meu Deus, deixei de cuidar de quem amo para atender a tantos que nem conheço?

Ao longo de todos esses anos, Marizete nunca descuidou da sua própria casa, nem do seu único filho, a quem tudo contava. E este lhe dizia: - “Mãe, pare de pensar que o teu lugar, a tua grande tarefa, é cuidar dele!”

Três meses distante dele, que agora, sabia, ele estava novamente internado na Colônia. Ao sair de lá, mais uma vez renovado e com a mente mais clara, imediatamente dirigiu-se a casa dela, propondo-lhe mais um recomeço. - “Tudo será bem diferente!” E Marizete abandonou os seus 120 pacientes da hemodiálise e foi de novo cuidar dele. Agora, as dívidas, segundo calculou, ultrapassavam os cem mil reais. Pior, a casa estava novamente destruída.- “Que luta!” – pensava Marizete.

Determinou que a primeira providência fosse reorganizar o escritório de advocacia. Agora os processos do escritório se espalhavam até pela casa dela, que fazia horas e horas extras para reorganizar tanta bagunça.

- “Mas Deus é fantástico!” O advogado, que antes tinha sido também sargento da Força Aérea Brasileira, recebe uma indenização de duzentos e setenta mil reais! Zeraram-se todas as dívidas! As audiências foram retomadas, tudo voltava ao normal – “mas alegria de pobre dura pouco, doutor!”

Ele decidiu atender ao pedido da irmã (sim, ele tinha uma irmã). Veio morar junto, na casa, a irmã e mais outro adotivo, cria da mãe de ambos – mas que estava vivendo agora com essa irmã. E mais um cachorro.

Ela continuou zelando por tudo, mas ele é quem não conseguia mais dormir. Queixava-se o tempo todo. - “Não dá mais pra agüentar!” – dizia para Marizete.

- “Vamos ao Fórum de Florianópolis, hoje?” – Ele convidou Marizete. Foram, e conversaram sobre tudo, a irmã, esses meninos, sobre essa compulsão dele de ajudar a todos e qualquer mendigo ou pedinte que lhe batessem a porta e permitir que sentassem à mesa, para as refeições. Sem dúvida um gesto bonito, sabia Marizete e que tinha a ver com a Igreja Evangélica a qual ele tinha se filiado. Contudo ela não conseguia esquecer que foram eles também que o convenceram a que abandonasse todos os medicamentos – fruto de muita ignorância e fanatismo! – pensava ela.

Ao saírem do Fórum ele a convida para que no próximo domingo, fossem todos ao Parque Aquático. - “Domingo foi o dia do enterro dele e do filho adotivo.” – disse - !?!?!

No sábado, um dia antes, eles foram à praia. Ele e os dois adotivos. Por volta das 17h30min Marizete recebia a notícia. Estavam mortos, ele e um dos meninos – o dele. Morreram afogados. Ficou desnorteada, feito um zumbi, sem rumo, mas demandou ao Hospital, quando foi se inteirando de mais detalhes. Ele teria tentado salvar o menino que se afogava. E então ambos foram tragados pelas ondas.

Ela estava dando continuidade a tudo, e aos processos, claro. - “Mas teria que repassá-los a outro advogado – Não é mesmo?”

- “Lembro que o menino, antes de saírem para a praia e desaparecerem para sempre, disse, bem alto: Quero ir aonde tenha ondas gigantes! E foram para a Galheta, ao dado da Praia Mole. Isso aconteceu no dia 20 de Novembro de 2011.”

- “Restaram algum e-mail e este conto do Pato – a última coisa, o último gesto dele para mim. Leia, por favor.” O conto, de cunho evangélico, ou melhor, cuja interpretação puxava pelo lado evangélico, concluía: “A vontade de Deus nunca irá levá-lo aonde a graça de Deus não irá protegê-lo”. Sem dúvida bem significativo, pensei.

Marizete, na minha frente, olhar distante, mirando algo além do infinito, rosto tristíssimo, aparência demasiadamente cansada, profunda, sem nenhuma pressa, verdadeira, interrogativa, me disse:

- “Pois então, doutor – o que acha que eu devo fazer agora?”











4 comentários:

  1. Adorei,. Zé! Fácil de ler e profundo...Inscreve em um concurso...Abraços.

    ResponderExcluir
  2. Isto foi escrito a quatro mãos, as minhas e as da Marizete.

    ResponderExcluir
  3. Olá. Sou escritor e recentemente construí um blog para divulgação de alguns textos premiados que escrevi acerca de acontecimentos ocorridos na história do Brasil. Gostaria de estabelecer uma parceria com troca de links entre nossos blogs.
    https://brasilliteral.wordpress.com/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. parceiro, para mim está perfeito. Fazia tempo que não entrava nestas minhas janelas.

      Excluir